Ana,
venha cá, venha! Deixa eu te ninar..... assim.... te pegar no colo, ter você
aqui, pertinho de mim, assim pertinho, pertinho..... depois te deito na cama e te
vejo dormir..... tão linda você era, Ana................. tinha os cabelos
enroladinhos, bem enroladinhos......... tão lindos! Por que você não deixa seus
cabelos enrolados, minha filha? São tão lindos........ Vem, Ana, que eu arrumo
pra você.... abra aquela gaveta ali e pegue uma fita vermelha.... vai ficar
lindo, Ana! Depois vamos no parque! Coloca aquele seu vestidinho florido.....
não, Ana, esse não! Aquele que tem um rasguinho na barra... ninguém nem
percebe.... Vamos! Você pode brincar no balanço, na gangorra, no gira-gira e se
você se comportar, depois vamos na sua vó................ Nossa, Ana, quanto
tempo não visitamos sua vó!!.................................. quanto tempo mesmo?
Ah, sim.... agora lembrei...... desde que ela morreu...........
coitadinha....... deve sentir nossa falta...... vamos, Ana, vamos! Não! Não!
Não! Não! Espera, Ana! Espera! Seu irmão, cadê? Cadê, seu irmão, Ana? Pedro!
Pedro! Pedro! Cadê o Pedrinho, Ana? Cadê? Vocês se foram e me deixaram aqui,
sozinha...... são uns ingratos! Me sugaram enquanto precisavam e depois, quando
já estavam prontos, voaram pra longe! Tudo bem... eu entendo... um filho
precisa seguir seu destino, encontrar seu caminho, fazer sua vida.... mas tudo
o que uma mãe espera é que às vezes ele retorne com uma migalha de amor pra lhe
oferecer..... migalhas, Ana! Migalhas! E nem isso vocês me deram! São uns
ingratos! Ingratos! Suma daqui, Ana! Suma daqui! Vai, Ana! Vai! Vai ver se
Pedro já chegou do trabalho................................ meu filho.................
tão bom moço........ tão lindo....... morrer assim..... Pedro não merecia...
não merecia... meu Deus, tivesse levado eu! Eu! Não, Pedro! Pedrinho, minha
joia..... meu amado...... educado, inteligente, trabalhador.... por que, Pedro,
meu Deus, por quê? O único que puxou pra mim....... você e José são iguais ao
seu pai, Ana! São todos iguais! Todos!............... Por que eles crescem, meu
Deus? Ficassem pequenos e eu tinha todos aqui, protegidos, acalentados....................
Ana, termine logo esse almoço antes que Pedro e seu pai voltem do serviço! José
não vem, fugiu de casa! Outro dia estava na TV com uns policiais..... seu irmão
é policial, Ana? ............ Deve ser bandido.... igual seu pai.......... mas
a diretora ligou, Zezinho brigou na escola de novo, vou lá ver o que aconteceu
e pego ele! Pedrinho aqui com febre e Zé brigando.......... e cadê seu pai pra
me ajudar? Deve estar no bar.... no bar, Ana! No bar! Vai chamar seu pai, Ana!
Vai! No bar! No Bar, Ana! ...................................................Não!
Não! Não! Não! Espera, Ana! Espera! Venha cá, venha! Deixa eu te ninar.....
assim.... te pegar no colo, ter você aqui, pertinho de mim, assim pertinho,
pertinho.... pertinho... pertinho.. pertinho.
Veredito
Na sala, a espera era longa. Uma mesa no centro guardava algumas
revistas.... anúncios, atrizes, novelas.... nada que maquilasse o tempo. Um
vaso de flores artificiais também repousava ali. As paredes aparentavam idade
avançada e uma TV, sem som, reproduzia algumas imagens.
O ambiente estava sufocado de pessoas. Tinham uma aparência cansada e
pensativa, as faces desfloridas e os ombros curvados.
Um homem batia os pés no chão acompanhando o compasso de uma música
inexistente, uma criança chorava, alguém fazia cliks com uma caneta, um
ou outro bocejava, o ventilador dava uns estalidos e a porta do banheiro batia
por conta do vento. Tudo isso formava uma orquestra infernal e foi com alívio
que ele ouviu a secretária chamar seu nome.
Entrou na sala onde a revelação vestida de branco o esperava. Os quadros de
paisagens que adornavam as paredes e o jardim de inverno que havia ao fundo transmitiam
uma fria paz.
O médico falava-lhe sobre uma doença incurável frente a qual a medicina
podia apenas manipular o tempo, acrescentando-lhe mais alguns meses ao
calendário. O doutor apresentava uma expressão triste e séria que tinha a
convicção que a regularidade do uso lhe dera.
Após ouvir toda a explicação sobre o que fizera de seu corpo um alojamento
e que retribuía a hospitalidade com a morte, se encaminhou para a porta e antes
de sair ouviu o médico aconselhá-lo a aproveitar o tempo que ainda lhe restava
visitando a família, por exemplo.
Saiu à rua, viu uma lanchonete que ficava em frente ao consultório e caminhou
para lá. Havia poucas pessoas ali, o sol ardia e o calor fazia suar, mas mesmo
assim pediu um café. Enquanto olhava os carros que passavam e o mormaço que
saia do asfalto, sorveu o primeiro gole pensando como aproveitaria seu tempo se
não tinha uma família para visitar.
Apetite
Já
não suporto o fardo da rotina,
a
falsa paz do mundo às avessas,
assistir
sempre a mesma comédia
e
só amar as belezas efêmeras.
Já
não suporto o sabor das palavras,
os
olhos cansados da mesma vista,
fixar
num mesmo chão minhas pegadas
e
não ouvir a voz daquilo que atrofia.
Desejo
a incoerência do existir
sem
tempo, a paz de poder estar vazio
e
a liberdade de não ter pra onde ir.
Desejo,
afinal, um doce alívio
e
se algo ainda possa me afligir,
que
a vida viva seja meu cilício.
Soneto a ser encaminhado ao departamento competente
Man Writing - Oliver Ray |
A ideia já se foi há
muito tempo.
O que há agora são
frases perplexas
e vãs, discutindo e
teorizando
sobre a incapacidade
do poeta.
Olham-no de sujeito a
predicado,
apedrejam-no com
pontos finais,
e tudo com o direto
objetivo
de crucificá-lo cada
vez mais.
E o poeta que chegou
a pensar
numa obra de sutil
significado,
vê-se, subitamente,
encurralado
por essas insensatas
em negrito.
E então, depois de
muito matutar
compõe um soneto para
reclamar.
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É preciso saber viver
Naquele
tempo a vida era áspera e atribulada, mesmo assim, vez ou outra, ela punha-se a
dançar inconsequentemente pelas festas ou pela casa.
Colocava
o velho rádio em cima do fogão e ficava à procura de uma estação que estivesse
tocando músicas do rei. Quando não encontrava, calçava seu chinelo amarelado e
ia até a esquina usar o telefone público pra pedir: “toca Roberto!”.
Voltava
e a cozinha transformava-se em seu salão. Os pés faziam um vai e vem confuso e
o quadril ensaiava um rebolado, enquanto os braços erguidos acompanhavam o
movimento da cabeça que guardava um sorriso de recordações e a paz do
esquecimento nos olhos fechados.
Nas
festas, depois de fazer o que dela se esperava, pegava um copo de bebida
qualquer, bebia-o sem saber o porquê e ia para o centro da roda.
O
mesmo vai e vem confuso dos pés, o mesmo rebolado mal acabado no quadril, os
braços erguidos, o movimento da cabeça, mas um sorriso que se voltava para o
presente e os olhos abertos para a realidade daquele momento.
Hoje
a vida é amena e tolerável, as coisas não são boas nem ruins. Ela não ouve mais
rádio, não dança mais e passa ilesa a qualquer música do rei.
Naquele
tempo, viver era a única opção.
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